terça-feira, 20 de março de 2012

O Jovem Bispo - Eleutério

A manhã de dezoito de abril de 138 d.C. deve ser memorável nos anais da grande cidade, não apenas pela paixão de um dos maiores mártires, mas pela morte de milhares de pessoas, que tiveram um fim intempestivo, nesse dia, dentro dos muros do Coliseu. Os demônios foram soltos por uma hora no anfiteatro, e deixaram a mancha indelével de sua presença nos registros de blasfêmias, crueldade e carnificina.
Sem dúvida, os espíritos do mal estavam mais irritados que o imperador pagão diante da constância de Eleutério. Seus milagres e orações diárias estavam aumentando as fileiras do cristianismo; milhares de pessoas começavam a temer o nome do Deus verdadeiro. As execu­ções públicas, que objetivavam intimidar o povo, tornaram-se fontes de conversão. Elas eram evidências oculares do poder do Deus vivo, e do poder e da sublimidade da fé cristã, que elevava os homens acima da paixão e do medo, e os capacitava a sorrir, com a liberdade dos •«tires, diante daquilo que constituía para os pagãos a maior das catástrofes: a separação da alma e do corpo. O sangue dos mártires fertilizava o solo da Igreja, e a cada um que caía, bilhares eram ganhos.
No dia em que Eleutério caiu vítima da espada do executor na arena do Coliseu, diferentes emoções animaram a multidão que presenciou o assassinato. Alguns estavam agitados pela curiosidade diante dos milagres operados em favor do jovem bispo, enquanto outros se encolerizavam como as fúrias do inferno pelo sangue dos cristãos.
Havia também cristãos entre eles, alegres e orgulhosos de seu campeão, que conferia tanta honra à Igreja, e tanta glória ao nome de Deus. Sem dúvida, estavam misturados à multidão alguns dos soldados batizados por Eleutério, poucos dias antes, ao pé das montanhas Sabinas Como as lágrimas de gratidão e condolência devem ter rolado pelas faces bronzeadas daqueles guerreiros endurecidos, quando viram o jovem bispo maltratado pelos lacaios do imperador! A fé cristã amolece o coração no momento em que o penetra; transforma em brandura, simpli­cidade, e amor as tendências brutais da natureza mais feroz: o pagão que ontem encurvava-se deliciado sobre as cenas de carnificina e crueldade, vira hoje a face, cheio de horror e desgosto.
O sol está alto no céu, e derrama seus raios meridianos em ardente esplendor sobre a cidade. De todas as partes, o povo acorre aos magotes para o seu anfiteatro favorito. A maioria esteve presente quando Eleutério foi jogado na caldeira de Corribono, e espera ver, agora, algo igualmente milagroso. Eles não serão desapontados.
O imperador chega com toda a sua corte. Ele parece triste e ansioso. A idade avançada e as muitas viagens revelam-se em sua avantajada compleição. Ele senta-se pesadamente no diva carmesim, no estrado real. Adriano teme a repetição de suas derrotas ao contender com o anjo da Igreja, a quem seu coração cruel e a voz da turba trouxeram uma vez mais à arena. Levado pelo orgulho a idéias absurdas de poder, e demasiadamente fraco de espírito para sofrer desapontamentos, teria dado metade do Império para ver-se livre de Eleutério.
As trombetas soaram. Os jogos tiveram início. Alguns gladiadores desfilaram à roda da arena, e saudaram o imperador com as palavras usuais: — Salve, César! Aqueles que vão morrer te saúdam!10
Alguns leões e tigres foram exibidos, dando cambalhotas por alguns momentos. Os pobres animais cativos apreciaram a luz e o ar puro, ao saírem das escuras e fétidas covas do Coliseu. Então as trombetas soaram novamente, e os gladiadores puseram-se a lutar. Algum sangue é derramado - um cativo de Trácia cai ferido.

"E de seu lado, as últimas gotas, vazando lentamente
do talho vermelho, caem pesadamente, uma a uma,
como as primeiras de uma chuvarada; e agora
a arena flutua à sua volta. Ele se vai
antes que cessem os gritos inumanos que aclamam o vil vencedor."

Um brado agudo levantou-se da multidão, pedindo a execução de Eleutério. A ordem foi dada, e o jovem, trazido em cadeias. Seu semblante agradável e angelical brilha mais belamen­te que nunca. Ele olha animadamente para as bancadas repletas de gente. Os gritos terríveis foram substituídos por um silêncio aflito, enquanto ele se movia com passos firmes ao centro da arena. Um pregoeiro ia adiante dele, anunciando em alta voz: — Eis aqui Eleutério, o cristão!
Um mensageiro foi enviado pelo imperador para indagar se ele sacrificaria ao deus Júpiter. Uma resposta severa e cortante sobre os demônios representados por Júpiter provou que o mártir achava-se mais destemido e invencível que nunca. Adriano ordenou que algumas bestas feras fossem soltas para devorá-lo.
Uma das passagens subterrâneas foi aberta, e uma hiena entrou na arena. O animal parecia assustado, e pôs-se a correr de um lado para o outro; depois, encaminhou-se gentilmente para o local onde Eleutério estava ajoelhado, e deitou-se como se temesse aproximar-se do servo de Deus.
O guardador, percebendo a indignação e o desapontamento do imperador, soltou um leão faminto, cujo rugido aterrorizou a multidão. O rei da selva correu em direção a Eleutério, não para dilacerar-lhe as carnes, mas para afagá-lo. O nobre animal abaixou-se diante do mártir, e chorou como um ser humano. "Quando o leão foi solto", contam os Atos, "ele correu para o abençoado Eleutério, e chorou diante do povo como um pai que não via o filho após longa separação, e lambeu-lhe as mãos e os pés".11
Seguiu-se uma cena emocionante. Algumas pessoas gritaram que Eleutério era um mágico, mas um raio do céu atingiu-as, e elas foram mortas em seus assentos. Outros bradaram pela liberdade do bispo, enquanto muitos, no entusiasmo do momento, gritaram: — Grande é o Deus dos cristãos!
O espírito do mal entrou nos piores dentre os pagãos, e em louco frenesi, eles caíram sobre os que haviam aclamado ao Deus dos cristãos, e os mataram. Foram atacados, em desforra, pelos amigos de suas vítimas, e o que sucedeu foi um horrendo derramamento de sangue. O anfiteatro inteiro estava em comoção, e nada se ouvia além dos berros do populacho enfurecido, que se rasgava em pedaços, e dos gritos aterrorizados das mulheres, misturados aos gemidos dos que morriam.
Adriano mandou que as trombetas soassem altas e claras, exigindo atenção. Não surtiu efeito; a carnificina continuou, e o sangue já escorria de uma bancada para outra. Finalmente o imperador ordenou que os soldados esvaziassem as bancadas superiores; com muita dificul­dade, e com a perda de alguns homens, eles conseguiram acalmar a disputa fatal.
Eleutério continuou, o tempo todo, ajoelhado no mesmo lugar. Muita gente saltou a barreira de proteção da arena, e agrupou-se à sua volta, buscando ser protegida. Os animais selvagens não ousavam tocá-las.
O mártir orou a Deus, pedindo que o removesse desse cenário tão revoltoso e temível. Sua oração foi ouvida. O Todo-Poderoso revelou-lhe, por uma voz interior, que permitiria ao seu servo ser martirizado pela espada. Num arrebatamento de alegria, ele disse às pessoas ao PU redor que, se o imperador o mandasse matar a espada, seria bem-sucedido. A mensagem l>i imediatamente levada a Adriano que, num acesso de ira, bradou: — Então, que ele morra leia espada! Ele é a causa de todo este tumulto!
As trombetas soam uma vez mais. A confusão e o terror logo se transformam em um silêncio sepulcral. Os espectadores inclinaram-se à frente, com a respiração suspensa, ansiosos por ver se o lictor teria êxito. Ele brande o aço poderoso, e o arremete... Eleutério já não vive. Seu sangue jorra na arena. A terra treme, e ouve-se um trovão no céu sem nuvem. Uma voz potente soa das abóbadas do céu, chamando Eleutério à bem-aventurança eterna.
Não obstante, Eleutério não foi a última vítima daquele dia. Havia outra mãe de Macabeu na multidão de espectadores: a mãe de Eleutério. Ela assistira, com a alegria de uma mãe cristã, tudo o que sofrerá o seu bravo filho. E quando ela o viu finalmente conquistar sua coroa, seu coração ardeu com os sentimentos naturais da compaixão materna, e com piedosa alegria. Quase se esquecendo de que estava no Coliseu, e cercada por uma multidão de pagãos, ela correu freneticamente à arena, e lançou-se sobre o corpo exangue de seu filho.
Um murmúrio de surpresa e dó chamou a atenção do imperador, que ainda não deixara o Coliseu. Ele mandou perguntar quem era ela, e por que abraçava o corpo do mártir. Quando lhe informaram tratar-se da mãe de Eleutério, e que ela também era cristã, e desejava morrer com o filho, o cruel imperador ordenou que fosse executada. A mesma espada que trouxe ao filho a coroa do martírio embebeu-se no sangue da mãe. Ela morreu abraçada ao corpo do rapaz, e suas almas virtuosas foram unidas no mundo da felicidade plena, onde a separação não mais existe.
Durante a noite, os corpos de ambos foram levados por alguns cristãos, e sepultados num vinhedo particular, fora da Porta Salara. Foram mantidos ali durante algum tempo, e depois transportados à cidade de Rieti, onde, no império de Constantino, uma suntuosa igreja foi erigida em sua memória.
A maravilhosa história desses fieis foi escrita por dois irmãos, testemunhas oculares da maioria desses fatos extraordinários. Eles concluem sua narrativa com as seguintes palavras: "Estas coisas que nós, os irmãos Eulogio e Teodoro, ordenados para este propósito, escreve­mos, foram vistas por nossos olhos e ouvidas por nossos ouvidos. Nós, que éramos sempre assistidos por sua santa admoestação, e com ele perseverávamos".12
Estes Atos, que citamos dos Bolandistas, acham-se preservados nos arquivos de sua igreja, em Rieti. Também foram escritos em grego, por outra testemunha ocular, com leves altera­ções, e por Metafrastes, cuja versão é dada por Sírio, em 18 de abril. Barônio, em seu martirológio, menciona os principais fatos da história, e refere-se a vários autores que são as nossas melhores autoridades para os registros da Igreja Primitiva.
Não poderíamos concluir sem dizer uma palavra sobre o imperador Adriano. Ele deixou o Coliseu, naquela manhã nefanda, silencioso e indisposto. Até a sua alma empedernida fora amaciada, mas não convertida. Ele recebera uma lição que o desencorajara de se opor novamente aos cristãos. Mas, como todos os perseguidores, ele teve, finalmente, o seu momento de retribuição. Enquanto ele estava no teatro, procurando destruir os servos de Cristo, seu organismo contraiu uma doença repugnante, da qual nunca se recuperou; tão miserável e desgraçado se tornou, que acabou morrendo voluntariamente de inanição.
Ele agonizou durante um ano, em horrível sofrimento; entregou-se à maior de todas as -nas superstições, na cega esperança de que os seus ídolos o curariam. As harpias do embuste reuniram-se à sua volta, e extorquiram-lhe imensas somas de dinheiro, alegando possuir habilidade ou magia para restaurá-lo. Contudo, a enfermidade só fez piorar, e o seu espírito ímpio foi tomado pelos horrores do desespero e do remorso.
A mão que escrevera o temível julgamento na parede de Belsazar já pesara o perseguidor da igreja, e a terrível sentença fora escrita perante ele, tão formidável em sua antecipação, que ele pensou evitá-la por meio da morte. Adriano tentou induzir alguém a assassiná-lo, mas não obteve resultado. Finalmente, cheio de remorsos e desespero, recusou tomar qualquer ali­mento, e morreu no dia 6 de julho, de 140 d.C. (segundo relata Barônio). Sua morte ocorreu em Baja, e seu corpo foi posteriormente removido por Antônio Pio, para o imenso mausoléu edificado às margens do Tibre. Este mausoléu ainda resiste em seu esplendor, como uma ruína indestrutível, recordando aos peregrinos cristãos da Cidade Eterna o triunfo dos mártires, e a cegueira do perseguidor da Igreja. É fácil contrastar o feliz destino de Plácido, Eleutério, e das demais almas nobres que com eles foram coroadas, com a medonha ruína e morte eterna de seus perseguidores.
Que Deus nos capacite a resistir às paixões tiranas que nos perseguem, a fim de que, se não tivermos o privilégio de derramar nosso sangue por Cristo, possamos ao menos sacrificar nosso amor próprio, e juntarmo-nos a esses mártires, um dia, em louvores ao mesmo Deus a quem amamos e servimos.

Um comentário:

Unknown disse...

QUE HISTÓRIA GRATIFICANTE.